Gabriela Albuquerque
LITORAL,
LITERAL,
LUTORAL.
Exposição no Coletivo Amarelo.
Lisboa, 2023.
Por que as súbitas mortes acontecidas em dias profundos, de sol, te impressionam e te comovem?
Mário Peixoto, A voz da grande calmaria.
Em seu texto Um mar que se desarma em letras: litoral, literal, lutoral, o psicanalista Edson Luiz André de Souza aborda o livro Morte em Pleno Verão do escritor Yukio Mishima. Na trama, num dia ensolarado e quente de verão, uma jovem mãe perde dois de seus três filhos num afogamento enquanto fazia uma sesta. A história é analisada a partir do conceito de Lituraterra de Jacques Lacan pois “o litoral marca o encontro dos heterogêneos e, por isto, Lacan sublinha com todas as letras que `decisiva é apenas a condição litoral´”. A tragédia passa-se numa praia que nos “faz lembrar nossas saudosas praias de infância”, assim como a série de pinturas Inúteis Paisagens de Gabriela Albuquerque. Durante o pior período da pandemia de COVID 19, a artista caminhava diariamente por praias paradisíacas do litoral lisboeta e representava-as incessantemente em pinturas de vários tamanhos. Possivelmente perguntava-se para que tanta beleza se há tanta tragédia acontecendo no mundo?
Há mais de 30 anos, o litoral, esse lugar idílico, foi palco da súbita e dramática morte de seu pai. Gabriela teve de caminhar inúmeras vezes pela paisagem da praia do Guincho para retornar para a praia da infância, onde viveu seu maior infortúnio. Ela teve de pintar incansavelmente o litoral que frequenta atualmente para poder atravessar o oceano e retornar para a costa paulista. Podemos questionarmo-nos por que a artista nomeia essas paisagens de inúteis. Teria a paisagem alguma utilidade? Para a filósofa Anne Cauquelin, a paisagem é aprendizado da realidade do mundo, a constituição de normas para enquadrar a natureza numa tentativa de controlar o real dentro de quatro bordas. Portanto, a utilidade da pintura de paisagem no Ocidente foi desde o início um projeto de domínio. Para Gabriela Albuquerque, as paisagens são o lutoral, lugar do luto. Em Angola, a calunga significa tanto o mar quanto o além-túmulo.
Como num sonho uma casa vermelha desponta e performa uma narrativa que parece não ter começo e nem fim. Ela é a personagem principal da estória contada na série Casa de Praia. Num ritmo e recorte fílmicos, a vemos ao longe, conseguimos vê-la por dentro, mas não percebemos ao certo se ela está sendo engolida pelo mar ou emerge do mar. Essa é a casa em que Gabriela e sua família passavam as férias de verão até uma discussão levá-los a veranear em outra praia, onde a tragédia aconteceu. Depois da morte, um outro corte ocorre, o impedimento de voltar a esta vivenda. Na pintura ela assombra por sua vivacidade e autonomia. É o contrário da literalidade. O poeta Wally Salomão já dizia que a memória é uma ilha de edição e essa condição aparece em praticamente todos os trabalhos presentes nesta primeira exposição individual de Gabriela Albuquerque.
Por sua vez, Chico Diaz ativa outra paisagem tirando partido do mesmo estado onírico. Nas obras apresentadas na Menor Galeria de Lisboa, vemos a resiliência vegetal que germina por entre as pedras. O território é o inverso do litoral, é só terra, aridez. Mas apesar do clima agreste, uma árvore (r)existe. Aqui o encontro dos heterogêneos reside no solo. Se nas paisagens de Gabriela o paradisíaco trata da morte, nas de Chico a desolação trata da vida. Ambas carregam a ambiguidade e o que parece pode não ser.
Cristiana Tejo
Curadora